Consciência histórica da escravidão: presença negra na sociedade brasileira

Vítor Mateus Viebrantz 
Acadêmico de História da UPF

Sandra Mara Bevengnú
                         Mestre em História pela UPF

O Brasil teve sua população formada através de relações intensas entre diversas etnias. Essas relações ainda têm reflexos na sociedade contemporânea, embora ainda com hierarquizações e preconceitos sobre nossa origem múltipla e rica. Ainda visando dirimir tais concepções prejudiciais a própria compreensão do brasileiro em sua historicidade, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, se promovem reflexões sobre um dos processos mais cruéis e longos da história nacional: a escravidão negra. Este processo provocou profundas mazelas sociais e mesmo depois da Abolição em 1888, a marginalização e a negligência aos negros estenderam a desigualdade, o racismo e o esquecimento da contribuição cultural desse grupo ao país. 

Desde o início da colonização na América portuguesa e espanhola as relações escravistas estiveram presentes, inicialmente com os indígenas e em seguida com os africanos, promovendo um tráfico e comércio bastante lucrativo. Esse processo escravista foi violento: além de ser retirado à força da sua sociedade e cultura, o negro era separado da família, viajava em navios superlotados em condições desumanas e ao chegar no Brasil-Colônia era submetido a trabalhos exaustivos, vivia em condições limitadas e obter sua liberdade era quase inatingível. 

Nada harmoniosa, a miscigenação do povo do Brasil formada no relacionamento entre o português e as negras escravizadas era marcada por abusos e estupros. A escravidão também foi marcada por muitas resistências: rebeliões de escravizados contra seus donos, ações cotidianas de recusa de ordens, fugas e formação de mocambos e quilombos. A passagem do Dia da Consciência Negra lembra a morte de Zumbi, um dos líderes do Quilombo dos Palmares, em Pernambuco. Apesar e para além disso, manifestações culturais como as continuidades das práticas das religiões de matriz afro, o sincretismo religioso, danças e rituais estão presentes no processo de constituição da identidade nacional. 

Pesquisando os fundos documentais do Juízo Distrital da Sede do Termo Soledade, na então Vila de Passo Fundo, que estão sob guarda do Arquivo Histórico Regional, os processos de inventários do Juízo de Órfãos e Ausentes tratam os escravizados como bens semoventes – categoria ligada ao patrimônio de animais domesticados, equinos, bovinos, caprinos, etc. São homens, mulheres e crianças negras consideradas como bens que eram comercializados e assim referidos, exprimindo o desprezo e a subestimação para com essa força de trabalho servil. 

Analisando um auto civil de inventário do mesmo Juízo, do ano de 1867, verifica-se a descrição dos bens semoventes do falecido, descritos da seguinte maneira: “vinte e quatro mulas manças, à quatorze mil reis cada uma, e todas por trezentos e trinta e seis mil reis, que se mostra; um Burro e cho [sic], avaliado por dez mil reis, que se mostra; (...) uma escrava de nome Joaquina de trinta e dois annos de idade, avaliada por setecentos mil reis, que se mostra; um escravo de nome Quirino de dezesseis anos de idade por setecentos e cinquenta mil reis; uma dita de nome Esmeria de quatorze anos de idade, por seiscentos e cinquenta mil reis; um dito de nome Estevão de quinze anos de idade, por setecentos mil reis, que vai; um dito de nome João de cinco anos de idade por quatrocentos e cinquenta mil reis, que sahi [sic.]; um dito de nome Camillo de tres anos de idade por duzentos e cinquenta mil reis; uma dita de nome Vitalina de seis meses de idade por cinquenta mil reis, que sai.”

Os preços dos escravos geralmente relacionavam-se com sua capacidade de produção para o mercado de trabalho, nesse sentido entende-se a variação indicativa dos valores de homens, mulheres e crianças. As cifras expõem como esses seres humanos eram negociáveis, vendíveis e considerados “como que animais” na documentação oficial. Esse auto de inventário está entre muitos no Brasil todo, que reproduzem como vidas, intenções e vontades foram frustradas por esse processo histórico que ainda tem marcas profundas em nossa vida cotidiana. Nesse sentido, a passagem do Dia da Consciência Negra também faz-se ocasião para ponderar sobre os mais de 300 anos de escravidão no Brasil, percebendo a presença desse processo no Brasil, no Rio Grande do Sul e em Passo Fundo e região, depreendendo a dimensão da participação cultural, social, econômica e política dos afro-brasileiros na formação do Brasil e refletindo sobre permanências como o racismo e a marginalização social.