28 de novembro – dias das milagreiras

                                                                                                                                                                                                                                                                                                      Profa. Gizele Zanotto
                                                                                                                                                                                                                                                                            Professora de História e do PPGH/UPF

    A história de Passo Fundo é instigante. A pluralidade de temas, eventos, processos e manifestações que constituem a rica história local ainda tem muito a serem aprofundadas mas, a cada nova pesquisa, a cada revisão das pesquisas já feitas, outras leituras possíveis vêm à tona para desestabilizar a perspectiva de uma história única, linear, progressiva vemos em muitas  narrativas já publicadas. Felizmente a história – como ciência – nos impele a prosseguir, questionar, revisitar as fontes e trazer novas reflexões. O caso das santinhas de Passo Fundo é um desses temas que não se esgotam. Até agora mapeamos três mulheres que marcam as práticas do crer local: Maria Pequena, Sabina Farias e Maria Elizabeth. Nosso tema neste artigo são as “Marias”, pela coincidência de data de falecimento, e pelas diferenças entre suas histórias e memórias/silenciamentos.

    Com base em artigos de jornal publicadas na década de 1950, tomamos conhecimento, via textos de Gomercindo dos Reis, de uma santinha local que teria sido assassinada durante os eventos da Revolução Federalista (1893-1895). Maria Meireles Trindade, segundo Reis, teria por ascendência materna o vínculo indígena. Teria sido, todavia, educada pelos vizinhos – quando abandonada pela mãe e logo depois pelo pai -, sendo iniciada na religião católica e formada por esta matriz religiosa. Na juventude casara com um soldado e, dessa união, teriam tido dois filhos. Maria, segue Reis, teria alguma deferência na comunidade pois além de lavadeira, seria vidente e conversaria com Nossa Senhora, consolidando-se como “especial” ante um público fiel em seus ensinamentos e previsões. Essa deferência teria sido ampliada com a virulência de sua morte quando, descreve Gomercindo dos Reis, teria se negado a indicar onde o marido, filho e outros soldados estavam a um piquete adversário que a encontrara às margens do riacho a lavar roupas. Negando a informação, Maria Pequena teria sido esfaqueada e degolada, num procedimento comum àquele contexto revolucionário. 

    Vitimizada, Maria Pequena teria sido sepultada próximo ao local do assassinato, na Vila Carmem onde, pela sua ousada negativa à prejudicar seus familiares, teria dado início a um local de sepultamentos cognominado Cemitério da Cruzinha, onde também crianças (anjinhos) seriam enterrados ao seu redor com o passar dos anos. A data do pretenso assassinato era 28 de novembro de 1894 constituindo também um evento anual de veneração à mulher “santa” que a comunidade seguiu ou iniciou após sua morte. Para Gomercindo dos Reis, Maria Pequena “foi mártir de sua fé cristã, do seu amor filial e conjugal e ainda de sua inabalável crença republicana”, conforme declarou em artigo publicado n´O Nacional, em junho de 1955.

    O tema de Maria Pequena entrou em cena em meados dos anos 1950 em função tanto das projeções da moderna Passo Fundo que se prospectava, quanto das comemorações para o centenário do município em 1957. O Cemitério da Cruzinha foi o desencadeador de uma questão urbanística que marcou debates. Situado em meio ao que se desejava ser o prolongamento da Rua Coronel Chicuta, o dito local de sepultamentos estaria sendo um “problema” a ser sanado para o desenvolvimento citadino em direção à Vila Carmem. A solução para a questão foi a retirada do Cemitério de sua localização original, ação realizada em 1954, recolha dos ossos de Maria Pequena e anjinhos para posterior construção de uma capelinha em sua homenagem (o que nunca foi feito). A partir desta destituição do local de devoção, tão caro a fiéis de santinhos, teria se dirimido o culto à mártir da Federalista.

    Maria Pequena foi esvaindo-se da memória coletiva local, todavia, 28 de novembro ainda seria foco de novo ímpeto do crer com o falecimento de uma jovem cristã. Maria Elizabeth de Oliveira, atropelada em um domingo, não resistiu aos ferimentos e sagrou a data com novo lócus de crenças e devoções locais. Em 1965 Maria Elizabeth alça-se a santinha de cemitério em Passo Fundo e desde então a deferência a esta menina milagreira só cresce. Se para Maria Pequena restou o silenciamento, pois não seria representativa de um culto católico quisto às novas diretrizes da recém-instaurada Diocese de Passo Fundo (1951), Maria Elizabeth suplantou essa deliberação eclesiástica ao mobilizar fiéis de forma intensa, a ponto de ser reconhecida também por membros da instituição católica. Contrapondo as histórias observa-se que em Passo Fundo, segue sendo 28 de novembro uma data marcante para as devoções religiosas na cidade. Seguimos observando como as formas e objetos do crer têm dinamicidade própria, mas suplantam decisões políticas, eclesiásticas, sociais e nos mostram a força do investimento sobrenatural também nesta cidade.