Violência na sociedade brasileira: um fenômeno cultural

A sociedade brasileira tem presenciado um crescimento significativo da violência, especialmente nos grandes centros urbanos como Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Este fato tem causado na população uma sensação geral de medo e insegurança, principalmente quando tais episódios passam a ser retratados e discutidos pelos meios de comunicação. Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) demonstram que entre os anos de 1992 e 2004, houve um aumento de 7,7 % nos casos de homicídio por 100 mil habitantes no país. A situação do Sudeste chama a atenção. Em 2004, a região apresentou a maior taxa de mortes por homicídios: 32,3 por 100 mil habitantes, acima da média nacional, de, 26,9. No meio rural a situação é quase a mesma. Os conflitos de terra e as lutas dos movimentos sociais em torno da reforma agrária agravam a situação. Para termos uma ideia do problema, basta analisar os dados de 2006 registrados pela CPT  (Comissão Pastoral da Terra). Segundo a entidade, naquele ano, foram registrados 1.657 conflitos envolvendo camponeses e trabalhadores rurais. Dentre esses, 39 foram assassinados, 72 foram vítimas de tentativa de assassinato, 57 mortos em consequência do conflito, 207 ameaçados de morte, 30 torturados, 917 presos e 749 foram agredidos e/ou feridos.

Estes dados têm levado a questionamentos: seria a violência um fenômeno específico do mundo contemporâneo? Ou então, seria a violência inerente a natureza humana? Acredito que não. Sua disseminação nas sociedades não está ligada a ideia de um comportamento intrínseco a natureza humana, mas sim as estruturas culturais que estimulam e ratificam atos violentos como algo “natural”. Em outras palavras, entendemos o fenômeno da violência como um comportamento apreendido e internalizado culturalmente.

Analisando a problemática em uma perspectiva histórica, fazem parte das sociedades o uso e as práticas de violência nas mais diversas formas e níveis. Se retrocedermos no tempo, ela esteve presente no quotidiano das sociedades desde a época dos nossos ancestrais. Em termos de Brasil, tais práticas se traduziram, sobretudo, na escravidão, onde os castigos físicos constituíam uma forma então tida como legítima de punir os cativos, especialmente aqueles que desafiavam a autoridade de seus senhores. No caso da República Velha, espaço-tempo de nossas pesquisas, os processos criminais da 1ª Vara do Civil e do Crime de Soledade, Comarca de Passo Fundo nos permitem compreender mais profundamente as relações entre violência e cultura. Em um período onde o poder do mando, a rede de compromissos coronelísticos, a conciliação de frações de classe, a troca de favores e o confronto entre as lides político-partidárias reinavam, forjando uma sociedade de cunho autoritário e paternalista, os processos-crime eram constituídos por multiplicidade de sujeitos e situações, em que os assassinatos e agressões constituíam a maior parte dos casos. Dos 125 processos tramitados no período, 64 são de homicídio e 42 de lesão corporal, distribuídos entre os mais variados tipos de violência, em espaços de sociabilidade, das autoridades policiais e judiciais, contra a mulher, por questões econômicas e entre famílias, ou então, cometida pelos mais variados sujeitos, proprietários de terra, policiais, juízes, pequenos agricultores, carroceiros, vendedores ambulantes, pedreiros, entre outros.

Ao visualizarmos nas fontes este quadro complexo de sociedade, nossas pesquisas permitem concluir que a violência neste contexto tornou-se uma norma de comportamento legítimo (não exatamente legal) para os indivíduos que a praticam; um mecanismo de resolução dos conflitos interpessoais que adquire significado na cultura. Se entendermos a cultura nas acepções do antropólogo americano Clifford Geertz, como uma teia de significados que o homem tece acerca do universo social no qual está inserido, ou seja, um complexo de padrões concretos de comportamento, um conjunto de atitudes, crenças e códigos de valores de uma sociedade que permanecem ao longo do tempo, as práticas de violência fazem parte das relações culturais daquela sociedade, adquirindo diferentes características e formas de manifestação ao longo do tempo.

Felipe Berté Freitas
Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em História/UPF
Fonte: Acervo AHR