O “Felisberto” de Lucas Anes

A matriz africana, caracteriza de modo singular nossa sociedade. Cada um dos cerca de 4 milhões de africanos que chegaram ao Brasil em mais de três séculos de escravatura não deixaram apenas melanina. A onipresença destes trabalhadores escravizados nos mais diversos ramos da sociedade, identifica categoria fundamental da história nacional.

Evidenciar as funções e os sentidos da escravidão na estruturação societária brasileira configura árdua tarefa. Por exemplo, ao analisar valiosos inventários dispostos no AHR (arquivo histórico regional) de poucas décadas atrás e encontrar nossos antepassados na parte de bens semoventes, visto de hoje, pode nos estarrecer. Deste modo, visitar nossos arquivos, como o desta cidade, aumenta consideravelmente nossa percepção.

No Brasil meridional o papel do cativo africano, portanto, teve destaque. Identificar o perfil, destes “arquitetos” é um dever.  Uma possibilidade aventada para contribuir à compreensão deste processo consiste na análise de documentos de alforria. A obra elaborada pelo APERS (arquivo público do Rio Grande do Sul) “Documentos da Escravidão: Cartas de Liberdade”, de 2006, apresenta grande volume de informações, registradas nos tabelionatos do interior sul-rio-riograndense distribuídas por quase todo o século XIX, inclusive em Passo Fundo.

Com orientação do professor Mario Maestri elucidaremos breves considerações. Os escravos tinham seus nomes de batismo atribuídos pelos escravizadores quando registrados na costa africana e até mesmo os nascidos no Brasil tinham suas designações cristãs definidas pelos proprietários. As denominações podem indicar procedência, como: “Manuel Congo”, a profissão: “Pedro Pedreiro”, e o local de embarque: “Francisco Mina” (fortaleza de São Jorge da Mina na costa africana). Com relação aos proprietários podemos desmitificar a tese da opulência de cativos junto a um núcleo familiar. Cidadãos proeminentes como o advogado e líder político Cel. Gervásio Lucas Anes grande responsável pelo desenvolvimento desta cidade, consta alforriando o cativo “Felisberto”, pardo, 25 anos, em 1879 “sem cláusulas ou condições alguma”.

É salutar compreender as cartas de alforria também como elemento estrutural da sociedade escravista. A tentativa de perpetuação do status quo se caracteriza em diversos momentos. Há uma verdadeira epopéia em voga de que a escravidão findou, em comparação às outras regiões do país, primeiramente em nossas bandas, no ano de 1884. Ignora-se as diversas imposições verificadas nas manumissões onde encontramos com recorrência, escravistas até depois da morte! A carta foi concedida “com a condição de me prestarem serviços durante a minha vida”, e ainda a vida dos herdeiros. Constatou-se o maior índice de alforrias distribuídas aos afrodescendentes, àqueles nascidos no Brasil, a época comumente conhecidos como “crioulos”, também às mulheres, ainda que a população masculina fosse predominante.

Ser escravo no Brasil diz respeito a cada um de nós, a suposta “democracia racial”, terra de pardos, deve pautar pela afirmação de Congos, Benguelas, Rebolos, Moçambiques, Nagôs... Esquecer nosso currículo nos faz olhar com estranhamento nossos recentes visitantes senegaleses, portanto tratemos de compreender nossas verdadeiras raízes.

Fabiano Barcellos Teixeira, acadêmico VIII nível de História da UPF