A volta da que não foi...

Nos primeiros dias do mês de setembro de 1979, o jornal O Nacional noticiava a Semana Pátria, o 20 de setembro - tão saudado e preparado pelos rio-grandenses -, e o retorno de Leonel Brizola ao país depois do exílio. Em busca de informações sobre as manifestações religiosas na cidade, acabei sendo “capturada” por uma notícia intrigante, entrelaçada às manchetes políticas e que já no título anunciava: Garota dada como morta em Porto Alegre apareceu viva ontem aqui. No texto, o jornalista Julio Rosa deteve-se na explicação do caso para os leitores: a moça – aqui denominada Rosa -, então com 17 anos, que fora dada como morta em um caso policial ocorrido em janeiro daquele mesmo ano quando então residia em Porto Alegre, apareceu naqueles dias na casa do tio – morador de Passo Fundo - para buscar documentos.

A moça morta era a “garota do Cais”, caso noticiado pela imprensa da capital em janeiro de 1979. O corpo encontrado no Cais do porto era de uma moça que foi estuprada e espancada até a morte. Pela dificuldade de obter a identificação da vítima, foi elaborado um retrato falado que posteriormente foi divulgado visando obter informações. A madrinha de Rosa teria reconhecido a sobrinha na imagem e, pelos antecedentes da noite do crime, quando ambas passavam pela zona portuária e foram abordadas por um motorista, acreditou tratar-se da parenta. O homem no cais as teria convidado para entrar no seu caminhão - onde estariam pelo menos mais dois indivíduos. Rosa teria aceitado o convite, entrado no veículo e, segundo narrou a tia, lá os sujeitos “tentaram perversões sexuais” e espancaram a sobrinha. Dias depois o corpo foi reconhecido pela madrinha de Rosa e também por seu tio, que foi de Passo Fundo a Porto Alegre naquela ocasião. Na mesma reportagem foi relatado que Rosa estaria morando em Porto Alegre com sua tia depois de ter saído de Passo Fundo com um taxista que a teria levado a Joaçaba/SC e depois à capital do estado. Quando Rosa voltou em setembro, o sinal de nascimento no seu seio teria sido o fator que confirmou tratar-se mesmo da menina que, até então, era considerada como morta e sepultada desde janeiro pelos familiares e amigos.

Por si só tal história já é instigante, mas os fatos relatados pelo jornalista seguem por alguns dias trazendo novos dados ainda mais estarrecedores. Rosa teria saído de casa como vítima de uma rede de tráfico de menores. Ela e outras meninas teriam sido convidadas a passear de carro por um taxista que as deixou em um bordel no estado vizinho. Mas a narrativa não para por aí. Retornando à casa dos parentes, Rosa teria sido considerada pela tia como um espírito, causando temor. Segundo conta a “morta-viva”: “É muito difícil viver momentos em que os parentes mais queridos têm medo da gente como se fosse uma alma de outro mundo”. 

Para além da história surpreendente e do temor dos parentes, a saga de Rosa não teria um fim tão fácil. O caso também foi analisado por advogados que afirmavam que o “caso de Rosa só existia na literatura”. Como a morta não estava morta e a garota do Cais não era Rosa, houve necessidade de anular o atestado de óbito e obter autorização para exumar o corpo enterrado no jazigo da família. A questão ganhou contornos jurídicos e morais ao desvelar os problemas do sepultamento de uma desconhecida em lugar de Rosa. Visando sanar o impasse, uma nova averiguação foi realizada com os tios que passaram a destacar o quanto o reconhecimento da “garota do Cais” teria sido marcado pela tensão nervosa, ampliada pelo odor de formol exalado no ambiente de identificação do corpo da vítima. Após tantas discussões, esclarecimentos e encaminhamentos para solucionar a situação de Rosa e do corpo da garota do Cais, ficou notório para o tio que “tratar de assuntos de gente viva é mais fácil do que de mortos”. Tramas e dramas a parte, eis uma história digna do rol de contos da República dos Coqueiros, a história da morta que não morreu...

Gizele Zanotto
Professora do Curso de História/UPF
Fonte: Acervo do AHR