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UPF Entrevista: O que a filosofia tem a dizer sobre temas ligados à pandemia?

08/09/2021

14:24

Por: Assessoria de Imprensa

Muito se fala em tempos de pandemia de covid-19, mas o que a filosofia tem a dizer? É com o intuito de mostrar a visão dela sobre assuntos ligados a esse contexto de pandemia, que o curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo (UPF) promove uma série de debates neste segundo semestre sobre solidão, luto e melancolia e o futuro. As datas, horários e os links das transmissões podem ser conferidos nas páginas do curso no Facebook (FilosofiaUpf) e no Instagram (filosofiaupf).

“O que a filosofia tem a dizer sobre...” é o nome de um projeto mantido pelo curso de Filosofia da UPF desde 2012, com o objetivo de contribuir com a discussão de temas de interesse geral e, assim, mostrar a contribuição da reflexão filosófica para a compreensão de “nosso” mundo e de “nós” mesmos. O professor da UPF, Dr. Marcelo J. Doro, coordenador do curso de Filosofia, comenta a seguir sobre a visão da filosofia sobre os temas que serão discutidos pelo projeto neste ano. “De forma diferente, cada um desses temas tem emergidos durante a pandemia e tem inquietado muita gente. O olhar da filosofia sobre eles torna-se especialmente importante para nos ajudar a reelaborar a compreensão acerca desses temas e, eventualmente, modificar a nossa experiência com eles”, salienta Doro. 

Marcelo J. Doro, mestre e doutor em Educação,
professor do curso de Filosofia e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UPF 

- A filosofia sempre tem algo a dizer?
Não. Há temas em relação aos quais a filosofia deve se calar, porque são temas que demandam uma abordagem técnico-científica de competência de outras áreas. Não cabe à filosofia, por exemplo, falar sobre qual a melhor maneira de evitar a propagação de um vírus na população ou, mais especificamente, sobre a eficácia das vacinas. É sensato que a filosofia se cale, nesses casos, em que importa sobretudo o discurso da ciência. No entanto, podem surgir questões específicas relacionadas à vacinação, por exemplo, que demandam uma reflexão filosófica: teriam as pessoas direito de recusar a imunização? Quanto a isso, há questões éticas a serem enfrentadas, pois embora diga respeito ao indivíduo, em primeiro lugar, tem consequências para a coletividade.

- E sobre este momento de pandemia enfrentado pela humanidade. A filosofia pode nos ajudar a compreender e a pensar sobre este momento?
A filosofia é reconhecida pelo seu esforço em produzir visões da realidade como um todo. Nesse sentido, enquanto diferentes ciências trabalham para ampliar nosso conhecimento acerca do vírus e os economistas e os governantes buscam solução para os problemas econômicos e sociais decorrentes do isolamento social, a filosofia por sua vez procura entender de que modo a pandemia afeta a nossa forma de vida atual, uma forma de vida global do ponto de vista econômico, mas territorial do ponto de vista social e político. A pandemia produziu um problema generalizado, mas a solução cabe a cada país; assim, as nações que têm mais recursos já contornaram o problema, enquanto nos países mais pobres (ou mais desorganizados) as pessoas continuam a sofrer e a morrer. Alguns filósofos questionam se não seria o caso de abandonar esse modelo de ação centrado na autonomia das nações e priorizar estratégias globais para o enfrentamento desses desafios que são globais. 

- A pandemia trouxe fragilidades à tona?
Outro problema que a pandemia expõe e que tem a ver com nossa forma de vida atual é a desigualdade social. Durante a pandemia cresceu consideravelmente o número de bilionários no mundo ao mesmo tempo em que a miséria e a fome voltaram a ser uma preocupação para uma grande parcela da população. Parece que há algo errado aqui: não deveríamos nos incomodar em viver em uma sociedade em que alguns poucos acumulam fortunas exorbitantes enquanto cresce a quantidade de pessoas que sequer conseguem comer? Além disso, a pandemia tem funcionado como um lembrete poderoso da fragilidade humana. Ela nos tem nos feito pensar em nossa finitude e no modo como estamos a gastar o nosso tempo.

- A pandemia e a demanda por distanciamento social proporcionaram doses extras de solidão para muitas pessoas. Qual a visão da filosofia sobre a solidão?
Temos, enquanto sociedade, uma visão negativa da solidão. Pessoas solitárias costumam ser tomadas de antemão como tristes, esquisitas ou loucas. Mas o fato é que todos vamos sentir solidão em algum momento, mesmo que breve, e essa visão negativa pode piorar essa experiência. Os filósofos discutem esse tema há bastante tempo e podem nos ajudar a perceber que a solidão também tem um lado positivo. Mais que isso: ela pode ser desejável, em períodos controlados, segundo o perfil de cada um, como um momento poderoso para o autoconhecimento e para a realização pessoal. Se pudermos perceber o potencial construtivo da solidão, então talvez os períodos de isolamento impostos pela pandemia não nos pareçam tão ruim. Com isso, obviamente, não se quer desconsiderar a gravidade de casos crônicos de solidão, que vão continuar a existir, trazendo sofrimento às pessoas, e que precisam ser contornados e evitados. 

- Quais os ensinamentos da filosofia sobre a morte?
Para começar, a morte precisa ser considerada como um fenômeno da vida, no sentido de que ela apenas importa para nós enquanto estamos vivos. Ela tem um poder mobilizador muito grande para nos fazer mudar a perspectiva com a qual encaramos os fatos da vida. Algumas coisas para as quais damos muita importância no cotidiano, simplesmente perdem o sentido quando refletimos sobre a brevidade da vida e a imprevisibilidade de seu fim. Não se trata de ficar pensando continuamente na morte, mas tomar sua inevitabilidade como parâmetro para distinguir o que em nossas vidas realmente importa e o que são banalidades. Tudo isso, no entanto, fica suspenso quando a morte se converte em mera estatística, quando vira um número... A pandemia parece ter favorecido uma tal banalização da morte, cujo reverso é a própria banalização da vida. Há muito para se pensar sobre isso. 

  • Confira mais sobre o assunto no vídeo com o professor da UPF, Dr. Marcelo J. Doro.

- Luto e melancolia também estão presente neste contexto de pandemia. O que a filosofia tem a dizer sobre isso?
O luto surge como resultado dos golpes que a realidade impõe à nossas pretensões, por exemplo, quando a morte de alguém próximo impede que continuemos a desfrutar de sua presença, de sua companhia. Mas nem todo luto envolve morte. Podemos nos encontrar em luto pelo fracasso de um projeto pessoal, por exemplo. O luto costuma ser contornado depois de algum tempo. Já a melancolia, que não precisa ter relação com o luto, diz respeito a certa disposição global da pessoa em relação à existência, caracterizada pelo desencantamento e pela tristeza. Atualmente é associada à depressão e costuma ser medicada. Mas será que a melancolia deve ser tratada como um mal? Será que não existe um lado criativo e interessante na melancolia, apesar da dor? 

- A humanidade não será a mesma depois desta pandemia. Na visão da filosofia, ela muda o modo de ser e de ver as coisas por parte do ser humano?
Ainda é cedo para compreendermos plenamente o impacto transformador da pandemia. Um evento dessa magnitude, certamente, deixará algumas marcas, continuará presente em nossas memórias e em nossas práticas. Para além das marcas individuais, é difícil saber o tipo e o tamanho de impacto cultural e social que a pandemia trará, se é que trará algum – não podemos subestimar a força dos velhos padrões em nos atrair novamente para eles assim que as coisas se aproximarem novamente da normalidade. 

- A filosofia pode nos ajudar a dizer para onde estamos indo? Qual será o futuro na visão dela?
O que nos atrai no futuro é o fato de ele, apesar de todo nosso esforço de previsão, permanecer em grande parte uma incógnita. Há muita especulação acerca do que nos aguarda no futuro, tanto por parte da filosofia quanto da própria ciência (nem vou mencionar a bem diversificada gama de profetas e adivinhos que abundam na internet), mas não se pode dizer coisas muito precisas. Do ponto de vista filosófico, o futuro interessa sobretudo enquanto o horizonte do possível, no qual podemos projetar nossa existência de uma maneira diferente daquela que temos no presente. Rigorosamente falando, o futuro não existe, estamos condenados a sempre viver apenas no presente; mas a verdade é que o presente não nos basta, temos a necessidade de nos anteciparmos no tempo, de viver para frente, de imaginar o novo. É no futuro que mora a esperança, e é a esperança que nos mantém em movimento. Como será nosso futuro? Isso depende, certamente, de nossa capacidade de inventá-lo e de busca-lo no presente. Dificilmente ele será tal qual nós o imaginamos, mas não há dúvida de que podemos influenciá-lo.