Pesquisa e Inovação

Um projeto, muitas mãos e um desafio: salvar papagaios da extinção

16/11/2021

16:34

Por: Assessoria de Imprensa

Com educação ambiental e conservação de áreas de alimentação e reprodução, há 30 anos o Projeto Charão atua para salvar o papagaio-charão e o papagaio-de-peito-roxo

De onde nasce um projeto? Pode-se dizer que de uma demanda ou de uma necessidade social. Contudo, esta é uma história diferente. Um projeto que nasceu da curiosidade, do desejo de transformar o mundo e, por meio do ensino e da pesquisa, permitir que uma espécie considerada em extinção pudesse ter um caminho de vida, cuidado e respeito. Esse é o Projeto Charão.

Professores Jaime e Nêmora lideram o Projeto que comemora 30 anos

Em 2021, o projeto de extensão completa 30 anos de atividades dedicadas ao estudo, conservação e preservação do papagaio-charão e do papagaio-de-peito-roxo. Consolidado como uma ferramenta para a preservação da espécie, as ações desenvolvidas nessas três décadas auxiliaram na redução da captura, por meio da educação ambiental, e na conservação de áreas de alimentação e reprodução das espécies. Sem o projeto, ambas  poderiam estar com as populações ainda menores. O desafio, agora, é continuar o trabalho de incentivo à recuperação do habitat das espécies, e a aplicação de estratégias de conservação e reprodução.

Do avistamento de uma revoada a um caminho de questionamentos

A construção do projeto passou por um caminho de questionamentos, que foram dando o tom das ações e provocando professores e acadêmicos para encontrar as respostas. De onde são estes papagaios? Como eles vieram parar aqui? Para onde vão quando não estão aqui na região? Do que se alimentam? Como se reproduzem? Como é o seu comportamento em grupo? Essas perguntas deram origem ao corpo do projeto, desenvolvido pelo Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Passo Fundo (ICB/UPF), juntamente com a Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA), de Carazinho. 

O coordenador do projeto, professor Dr. Jaime Martinez, lembra com carinho das primeiras pessoas que foram se unindo ao grupo. Há 30 anos, pouco se sabia sobre a espécie e as pesquisas desenvolvidas pelo projeto foram precursoras e responsáveis pela mudança de comportamento em relação aos papagaios. “Quando vimos eles pela primeira vez em Carazinho, em atividades acadêmicas, nos questionamos sobre a presença deles na região e levantamos muitas dúvidas. Isso nos permitiu correr atrás das respostas e, com elas, das primeiras informações que deram base ao projeto”, conta.

A partir do trabalho iniciado, concluiu-se que o papagaio-charão era mesmo um visitante da região, que transitava por vários locais e que muitas ações precisavam ser feitas para que ele continuasse presente.

Clique e confira as curiosidades sobre o papagaio-charão

Vivência prática que estimula a participação acadêmica

Por meio do projeto foi possível determinar, por exemplo, que o papagaio-charão pertence às espécies migratórias, informação que até então não tinha sido abordada. Martinez comenta que a partir do primeiro estudo, vários outros foram surgindo. E, de uma visita em um Parque Municipal em Carazinho, o projeto tomou força, analisando a ave em várias cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. 

Foi também pelo trabalho desenvolvido, que os pesquisadores compreenderam melhor a reprodução, alimentação e puderam, como ação prática, desenvolver mecanismos que ajudassem na preservação da espécie. Hoje, a iniciativa conta com a parceria de diversos órgãos governamentais e ambientais que auxiliam nas ações, no investimento e no desenvolvimento das atividades. 

De acordo com Martinez, dentro do projeto, em função da sua característica multidisciplinar, estudantes, professores e a comunidade têm acesso ao mundo da pesquisa, do ensino e da extensão, vivenciados diariamente na Universidade. “É uma ação que converge tudo que a Universidade permite. Pesquisas a campo, leituras, publicações, troca de experiências, vivências, elaboração de novos métodos e levantamentos que permitem mudar uma realidade. Isso somente é possível com a união de muitos esforços”, observa.

Maria Eduarda Alberti, acadêmica de Ciências Biológicas, conheceu o projeto quando ainda estava na escola. Ao participar dos momentos de formação oferecidos, ela quis fazer parte. Segundo a estudante, todo acadêmico, quando entra na faculdade, tem o sonho de fazer a diferença e, nas Ciências Biológicas, esse sonho tem muita relação com a natureza. “Queremos levar o projeto cada vez mais para dentro das comunidades, mostrar a importância dele. Já no meu TCC, me apaixonei pelos felinos silvestres que vi na Reserva de Urupema, em Santa Catarina, fruto de uma área de preservação conquistada pelo Projeto Charão. Participar deste projeto e fazer parte de ações de pesquisa e extensão é um grande diferencial na minha formação, é uma oportunidade que a Universidade abre para todos os estudantes que desejam atuar nessa área”, destacou.

Também estudante de Ciências Biológicas, Nicolas Ribas é estagiário do Projeto Charão e trabalhou no Centro de Reprodução de Psitacídeos (CREP) William Belton, criadouro científico da Instituição com finalidades de pesquisa. "Nesse período tive o privilégio de estar em contato direto com os papagaios e sua reprodução. Foi um lugar que marcou minha vida, não só pelo trabalho em si, mas pelas oportunidades que tive e as pessoas que conheci. O projeto exala amor e dedicação em cada parte, afinal, é feito por pessoas que realmente se importam. Sou muito grato por fazer parte desse time", declara o acadêmico.

O professor Jaime conta um pouco da história que deu início ao Projeto

 

Educação ambiental que faz a diferença

Durante essas três décadas de atividades, o Projeto Charão já fez parte da vida de muitas pessoas. Crianças a adultos que se engajaram pela causa e valorizaram a importância do trabalho realizado, como é o caso dos professores e estudantes das escolas municipais do município de Nova Bassano, que, desde 2013, realizam atividades permanentes sobre o Charão.

A professora Anizete Hoffmann, coordenadora do projeto no município, conta que o envolvimento iniciou após uma formação oferecida pelos biólogos e professores que fazem parte do projeto. “A formação nos encantou. Fizemos o curso e voltamos muito animadas. Desde esse momento, as escolas municipais passaram a desenvolver o projeto na cidade. Fizemos pesquisa geográfica, mapeando os pontos onde existem araucárias, conversamos com pessoas mais velhas da comunidade sobre a importância do papagaio-charão e das araucárias na vida delas e fomos construindo nosso projeto”, conta ela, ao destacar que cerca de 1,2 mil estudantes já se engajaram com as atividades realizadas em duas escolas do município: a Escola Municipal de Ensino Fundamental 15 de Novembro e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Teodolinda Reginatto.

Segundo a professora, a proposta de trabalhar o projeto em sala de aula proporciona o envolvimento do tema em todas as áreas do ensino. “Trabalhamos a interdisciplinaridade, começando pela sustentabilidade e a preservação das espécies. Todos os anos comemoramos o Dia do Meio Ambiente com a prática de plantio”, conta, pontuando que, além das araucárias, também são plantadas mudas de espécies frutíferas nativas, como araçá, goiaba e pitanga. “O Projeto Charão é vida, é relação das crianças com a natureza. Me deixa muito feliz ensinar os alunos a cuidarem do que é nosso, pois através do projeto vemos participação efetiva deles na escola e que repercute fora dela”, pontua.

O que caracteriza uma espécie em extinção?

Uma das atividades que obteve envolvimento de toda a comunidade de Nova Bassano foi a campanha para angariar recursos para a compra de uma área florestal em Santa Catarina que se tornaria uma Reserva Particular de Patrimônio Natural. “Propus para as professoras uma ideia de campanha de coleta de materiais e elas deram a sugestão de recolhermos papel e jornal para vendermos e ajudar nessa compra. Os alunos passaram no comércio e nas residências pedir os materiais. Nossa escola virou um local de reciclagem. Marcamos um dia para recolher o material e o valor arrecadado encaminhamos para os responsáveis da campanha”, lembra.

Da pesquisa à criação de uma Reserva Particular de Patrimônio Natural

A grandiosidade do Projeto Charão possibilita que suas ações sejam desenvolvidas para além do Rio Grande do Sul, por meio de diversos parceiros. Um deles é o Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina, órgão ambiental da esfera estadual do governo catarinense.

Principal fonte de alimentação: o pinhão

Segundo a bióloga do IMA, Luthiana Carbonell dos Santos, o Projeto Charão é um importante parceiro do Instituto e uma referência, não apenas no âmbito estadual, como também nacional, em pesquisa e conservação do papagaio-charão e do papagaio-de-peito-roxo. “Estas duas espécies estão ameaçadas de extinção no Estado de Santa Catarina, exigindo, dessa forma, a adoção de estratégias e planos de conservação específicos”, comenta.

Nesse sentido, o Projeto Charão contribui de forma essencial para o desenvolvimento de ações de conservação, fornecendo informações provenientes de pesquisas científicas de longa duração que amparam tecnicamente a tomada de decisão pelo órgão, tanto no âmbito do licenciamento ambiental como na construção de ações de conservação. “Por exemplo, há a elaboração do Plano de Ação Territorial para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção do Planalto Sul – PAT Planalto Sul, do qual o Projeto Charão é membro do Grupo de Assessoramento Técnico, grupo responsável pelo monitoramento e implementação do Plano de Ação. O Projeto também é protagonista do processo de elaboração da Proposta de Terceiro Corredor Ecológico Papagaios da Serra”, relata Luthiana. O projeto do corredor que permite aumentar o intercâmbio entre espécies da fauna e flora está em processo de avaliação para a sua efetivação.

Para a bióloga, o Projeto Charão tem contribuído para a conservação das espécies ameaçadas de extinção no estado, por meio de sua atuação em projetos de pesquisa, monitoramento e extensão. “A parceria com o Projeto tem sido fundamental para a melhor condução das ações de conservação direcionadas não somente às espécies de papagaios, como também ao ambiente onde estão inseridas, o que envolve uma atuação em rede com outras instituições e o engajamento da sociedade para a conservação da biodiversidade”, afirma.

Uma das medidas com maior envolvimento da comunidade se consolidou em fevereiro de 2018, com a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Papagaios de Altitude pelo Projeto Charão/AMA em Urupema, SC. Esta Unidade de Conservação protege o papagaio-charão, o papagaio-de-peito-roxo e seus habitats, favorecendo, ainda, diversas outras espécies de animais e vegetais. Em Urupema, há uma grande concentração de araucárias, por isso o papagaio-charão permanece no local para alimentação nos meses de migração, ocorrendo um grande encontro de aves da espécie.

A descoberta de uma espécie migratória

A área de 46 hectares foi adquirida com apoio de instituições como o Comitê Holandês da União Internacional da Conservação da Natureza (IUCN) e do Rainforest Trust dos Estados Unidos, além de doações de muitas pessoas do Brasil, inclusive professores e acadêmicos da UPF. Nessa área não há nenhuma forma de coleta de recursos naturais.

Subsídio para decisões de manejo e proteção das espécies

Para Patrícia Pereira Serafini, analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave/SC) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Brasil possui uma biodiversidade riquíssima e o privilégio de ter instituições e pessoas que dedicam suas vidas à conservação da natureza. “As pesquisas em andamento, há décadas, obtiveram os dados básicos sobre a biologia desses papagaios e detectam áreas a serem preservadas, subsidiando o estabelecimento de ações de conservação”, destaca Patrícia. 
 
“Além disso, o trabalho do projeto subsidia decisões de manejo e a proteção das espécies contra o comércio ilegal, além de também integrarem um trabalho contínuo de educação para a conservação. Em resumo, o ICMBio tem grande admiração por toda a equipe do Projeto Charão, por toda sua rica história, incrível acúmulo de esforços e conhecimento. Temos imensa gratidão pela oportunidade de trabalharmos juntos, desde 2010, na implementação de um importante instrumento de gestão para a conservação, o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Papagaios – o PAN Papagaios", afirma a analista ambiental.

Um projeto de esperanças e parcerias

E o futuro?

As conquistas obtidas até aqui foram fundamentais para a sobrevivência da espécie. No entanto, a professora Dra. Nêmora Prestes lembra que, apesar de todos os esforços direcionados à preservação, o papagaio-charão ainda é considerado uma espécie vulnerável à extinção. Por isso, ainda é preciso muito envolvimento das comunidades que estão na rota migratória dos papagaios para garantir a sobrevivência das aves nas próximas décadas.

A professora destaca três aspectos fundamentais que devem ter prioridade na atuação dos próximos anos: recuperação do habitat, monitoramento da espécie e a instalação de caixas ninho para a reprodução.

O trabalho de monitoramento da população, que existe desde 1995, é um dos que deve ser realizado de forma contínua, uma vez que é fundamental para auxiliar os pesquisadores e os órgãos ambientais na aplicação de estratégias práticas para a conservação das espécies.

Mesmo com a criação da RPPN Papagaios de Altitude, é preciso avançar na recuperação e preservação do habitat natural. “Ainda temos muitas florestas degradadas e fragmentadas que precisamos tomar cuidado sempre”, pontua a professora.

Outra estratégia forte adotada e que deve ser mantida é a instalação de caixas ninho nas florestas. Elas substituem as cavidades naturais utilizadas pelos papagaios como ninhos e possibilita que as aves se reproduzam, o que garante que a população se mantenha estável, por meio da reprodução.

Grande entusiasta das ações desenvolvidas, o professor Jaime coloca nos novos acadêmicos e voluntários o futuro do projeto. Para ele, a cada novo membro, a cada novo estudante que desenvolve sua pesquisa e volta sua atenção para o trabalho desenvolvido, o Charão ganha mais anos de vida. “Temos um projeto consolidado, mas que ainda tem muitos desafios. As mudanças sociais e ambientais estão aí e o nosso objetivo é estar preparados para enfrentá-las, fazendo a nossa parte. O futuro está nas mãos desses jovens pesquisadores que chegam com o seu olhar dinâmico e atento. O que queremos é que o Projeto não apenas se mantenha, mas siga evoluindo”, prospecta.