Cultura

O caso do gato-mourisco e um triste fato sobre as espécies ameaçadas e não ameaçadas de extinção

11/10/2016

20:00

Por: Assessoria de Imprensa

André Luís Luza¹, Carlos Toffolo², Carla Denise Tedesco3, Noeli Zanella³

¹ Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

² Curso de Ciência Biológicas, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS.

³ Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS.

 

Podia mesmo ser uma história feliz! Há aproximadamente  um mês foi anunciada a criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural da Universidade de Passo Fundo, a RPPN-UPF, em Passo Fundo - RS. A Reserva tem o propósito de proteger nascentes, rios e áreas de vegetação ciliar – diretamente relacionadas com a qualidade da água disponibilizada para a população – e com a qualidade de habitats para a flora e fauna da região periurbana do município.

Resultados de pesquisas recentes realizadas pelos Laboratórios de Ecologia e de Herpetologia da Universidade de Passo Fundo têm revelado a presença de diversas espécies de mamíferos de pequeno e médio porte (incluindo espécies sob ameaça de extinção) na região periurbana do município de Passo Fundo. Dentre esses registros, contemporâneos à notícia da criação da RPPN-UPF, mereceu destaque a comprovação da presença do gato-mourisco, ou jaguarundi (Puma yagouaroundi), no campus da Universidade de Passo Fundo – RS.

O gato-mourisco é um felino de médio porte que está listado como vulnerável à extinção na lista mais recente de espécies ameaçadas do Rio Grande do Sul formulada pela Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, 2014). Esses registros incitam a preservação de remanescentes de vegetação nativa, como a RPPN-UPF, em regiões periurbanas. Simples assim? Infelizmente não! Um triste fato faz com que essas histórias de conservação da biodiversidade não tenham sempre um final feliz: o atropelamento de animais silvestres em estradas.

Há, nesse cenário, portanto, elementos que entram em conflito. Se, por um lado, se comemora a criação da RPPN e a percepção da presença do gato-mourisco, por outro, se lamenta o infeliz registro do atropelamento de um gato-mourisco na rodovia BR-285, próximo ao acesso à Universidade de Passo Fundo. A fragmentação de ecossistemas pela incessante necessidade de desenvolvimento econômico faz com que os animais tenham que fugir dos sítios ocupados e, infelizmente, o destino final para muitos animais (principalmente para aqueles com grandes áreas de vida, tais como os cervídeos, os felídeos e os canídeos) são as estradas e os para-choques de carros e caminhões. No Brasil, estima-se que 473 milhões de animais silvestres sejam mortos anualmente por atropelamento e que espécies de grande porte e extremamente ameaçadas de extinção, como a onça-pintada (Panthera onca) e a anta (Tapirus terrestris), continuam sendo atropeladas dentro de suas últimas áreas de ocorrência. Para exemplificar, recorremos a um dado referente à região do Planalto Médio do Rio Grande do Sul: Carla Hegel e colaboradores realizaram um estudo (publicado em 2012 no periódico Biotemas, UFSC) em um trecho da RS-135, entre Passo Fundo e Sertão, e registraram o atropelamento de três espécies vulneráveis à extinção no RS, quais sejam o gato-do-mato (Leopardus guttulus), o tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla) e o gato-mourisco.

Não são somente essas, no entanto, as espécies que merecem atenção, sendo necessário dar importância também a espécies não ameaçadas ou a espécies de pequeno porte, já que estas são as mais frequentemente atropeladas. Nesse cenário, é recorrente a presença de graxains (Cerdocyon thous, Lycolapex gymnocercus), gambás (Didelphis albiventris), tatús (Dasypus spp.), zorrilhos (Conepatus chinga) e preás (Cavia aperea) atropelados pelas estradas do Planalto Médio, além de centenas de aves e répteis que, também comumente, são negligenciados nesse contexto.

O estudo de Hegel e colaboradores(2012) também registrou a taxa de um mamífero atropelado a cada 40 km, tendo sido considerados, na pesquisa, tanto mamíferos ameaçados quanto não ameaçados de extinção. Embora o número pareça pouco expressivo,  há três fatos básicos que dão relevância mais expressiva a esses números: 1) essas pesquisadoras consideraram somente mamíferos; outros táxons, como aves, répteis, anfíbios e insetos, contribuem ainda mais para as taxas de atropelamento; 2)  não foram consideradas as taxas de detecção e remoção de carcaças, dois fatores indispensáveis para se estimar medidas mais realistas; e 3) os atropelamentos são desigualmente distribuídos ao longo das estradas; ou seja, existem trechos onde há maior probabilidade de atropelamentos (chamados de hotspots de atropelamentos, que geralmente são locais onde estradas cruzam com corredores de vegetação frequentemente utilizados para o deslocamento das espécies ou onde o fluxo de veículos é intenso) e que podem não ter integrado o espaço no qual a pesquisa foi realizada.

Então, o que podemos fazer para resolver isso?

Além de ter clareza que criar refúgios para a biodiversidade – tais como a RPPN-UPF – é uma alternativa extremamente necessária, há, também, que se fornecer condições para que as espécies consigam se deslocar dos refúgios para habitats do entorno com segurança, principalmente se forem considerados animais com grandes áreas de vida e ampla capacidade de deslocamento.

Identificar hotspots de atropelamentos é essencial, mas mais importante é que se possa utilizá-los como uma ferramenta para propor ações para mitigar o efeito das estradas. Essas ações incluem a criação e o monitoramento da eficiência de passagens para a fauna, bem como contemplam a instalação de cercas, de redutores de velocidade e de placas que incitem cuidados com o deslocamento da fauna. Nenhum desses equipamentos urbanos é visto nas estradas da região periurbana de Passo Fundo. Será que essas ações teriam evitado o atropelamento desse gato-mourisco? Não sabemos, mas, com certeza, algumas delas ajudariam a evitar e a minimizar o impacto de atropelamentos de fauna silvestre.

Não se tem dúvidas de que a morte é inerente a todos os seres vivos, mas há que se ponderar que ninguém merece finalizar a vida sendo ceifado por um para-choque!

Figura 1: Gato-mourisco fotografado no Campus I da Universidade de Passo Fundo.

Fonte: Laboratórios de Ecologia e Herpetologia da UPF.


Referências e sugestões de leituras

COELHO, Igor Pfeifer. 2016. Fauna e Estradas - Quantos animais morrem atropelados naquela rodovia? Blog Fauna News. Disponível em: http://www.faunanews.com.br/artigo/2016/06/fauna-e-estradas-quantos-animais-morrem-atropelados-naquela-rodovia-17/

HEGEL, Carla Grasiele Zanin; CONSALTER, Gabriela Cássia; ZANELLA, Noeli. 2012. Mamíferos silvestres atropelados na rodovia RS-135, norte do
Estado do Rio Grande do Sul. Biotemas, 25 (2): 165-170. doi: 10.5007/2175-7925.2012v25n2p165.

Fundação Universidade de Passo Fundo. 2015 Relatório de Monitoramento da Fauna do Campus I.

Rio Grande do Sul. 2014. Decreto nº 51.797 de 8 de setembro de 2014. Declara as espécies da fauna silvestre ameaçadas de extinção no estado do Rio Grande do Sul. DOE nº 173, de 09 de setembro de 2014.

RPPN UPF é regulamentada pelo ICMBio. In: https://www.upf.br/ICB/noticia/rppn-upf-e-regulamentada-pelo-icmbio

Espécie ameaçada de extinção, Gato-mourisco é encontrado na UPF. In: https://www.upf.br/noticia/especie-ameacada-de-extincao--gato-mourisco-e-encontrado-na-upf

“Atropelômetro” nacional. In: http://cbee.ufla.br/portal/atropelometro/

Fauna e Estradas - Quantos animais morrem atropelados naquela rodovia? In: http://www.faunanews.com.br/artigo/2016/06/fauna-e-estradas-quantos-animais-morrem-atropelados-naquela-rodovia-17/