Ensino

ECA 30 anos: proteger a infância, a adolescência e superar os desafios

07/08/2020

14:33

Por: Caroline Simor

Fotos: Caroline Simor

Criado na década de 90, o Estatuto permitiu a proteção e a garantia de direitos para crianças e adolescentes. Hoje, vive o desafio de se manter firme em seu propósito

Criado com o objetivo de proteger e cuidar, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) chega a sua terceira década como um instrumento na garantia de direitos e no estabelecimento de deveres da sociedade. A lei 8.069/90 tornou a criança e o adolescente sujeitos de direito e tem a missão de superar os desafios da atualidade, permitindo que esta fase da vida seja de desenvolvimento para todos.

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF), Dalmir Franklin de Oliveira Júnior, toda a mudança de paradigma, de sistema, é muito difícil. Ele pontua que a Constituição de 88, em seu art. 227, trouxe para o Brasil a Doutrina da Proteção Integral, com novos princípios e novas ideias, bem diferentes daquelas do sistema anterior, chamado de Doutrina da Situação Irregular, que orientou o antigo Código de Menores.

Juiz de Direito, hoje responsável pela Vara da Família em Passo Fundo, Dalmir explica que antes o menor era apenas a pessoa entre 0 e 18 anos que era abandonado ou delinquente, considerados absolutamente incapazes, e eram objeto da ação estatal, muitas vezes de caráter assistencialista. “Os bem-nascidos não eram considerados menores. Tínhamos duas infâncias. A nova doutrina estabelece que a infância e adolescência são uma só, definida pela idade biológica, identificando-os como sujeitos de direitos, com uma capacidade relativa de acordo com seu grau de desenvolvimento. Mais, estão em uma peculiar condição de desenvolvimento, razão pela qual seus direitos são prioridade absoluta, ou seja, estão acima de quaisquer outros. Era o que estávamos tentando fazer, até uma parcela da população eleger, para a Presidência da República, um candidato que afirmou que o Estatuto deveria ser rasgado e jogado no lixo. Claramente, vivemos um grande retrocesso”, pontua, destacando que foram mudanças fortes, radicais e que exigem uma apropriação e internalização da sociedade e do Estado, ao contrário do que se vê na atualidade.

Uma das pautas mais polêmicas que permeiam o tema é a discussão sobre a redução ou não da maioridade penal. O Brasil estabelece que a partir dos 18 anos o jovem torna-se penalmente responsável e que, antes disso, são cabíveis medidas socioeducativas. Dalmir tem uma posição bastante sólida com relação ao tema. O professor, que já atuou na Vara da Infância e da Juventude, baseia seu posicionamento na Constituição Federal e na impossibilidade da redução sem que para isso sejam feridos direitos fundamentais. “É impossível a redução da maioridade penal na vigência da Constituição de 1988. Qualquer proposta é inconstitucional, na medida em que viola o direito fundamental de liberdade especial dos adolescentes de serem submetidos às mesmas penas dos adultos. As pessoas têm que entender que as medidas socioeducativas são muito parecidas com as penas, com a diferença de ter um tempo menor (já que o adolescente viveu menos e tem menos experiência) e por possuírem o caráter educacional, já que estes sujeitos estão numa peculiar condição de desenvolvimento, na fase da vida em que estamos mais propícios a aprender”, explica.

Além das questões inconstitucionais, o professor aponta fatores sociais que também devem ser observados, como, por exemplo, a realidade dos presídios brasileiros, dominados pelas facções e orientados pelo crime e pela violência. “Como as facções mandam na cadeia, quando o sujeito ingressa nela ele tem que optar por alguma delas e não se trata de uma faculdade, uma possibilidade, é um dever de sobrevivência. Essas facções comandam o crime dentro e fora do sistema prisional, é um sistema de crime organizado, uma espécie de pós-graduação em termos de criminalidade. Colocar este jovem neste sistema é pior para ele e para a sociedade, sem qualquer sombra de dúvidas. No CASE temos muito mais condições de mudar a vida deste sujeito, mesmo com todas as dificuldades que precisam ser enfrentadas”, destaca, usando como exemplo o Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE). 

 

Avanços, retrocessos, desafios em sociedade
Considerado um documento inovador, o ECA foi construído num esforço da sociedade brasileira após o fim da ditadura militar. Seu objetivo foi acabar com o Código de Menores e, inspirado nos avanços obtidos no âmbito internacional, em favor da infância e da juventude, evoluir na questão dos Direitos Humanos.

Para Dalmir, houve alguns avanços. Ele ressalta a separação necessária do atendimento entre aqueles que praticam o crime, chamados de atos infracionais, violando o direito de outra pessoa e, por isso, recebendo uma medida socioeducativa; daqueles que são vítimas de violações de direitos, que devem ser protegidos. Antes ficavam todos na mesma instituição, as antigas FEBEMs. “É preciso qualificar permanentemente estes espaços, seja em estrutura física ou humana. Para tanto, é preciso investimento, decisões políticas, com energia e recursos, montando-se projetos que atendam toda a complexidade e capacidade potencial destes jovens. Primeiro, temos que fazer um bom diagnóstico para, depois, proporcionar oportunidades, facilidades, caminhos. Não sabemos se eles vão aproveitar, porque depende muito dos recursos psíquicos que cada um deles tem. Por isso, também, é muito importante o acompanhamento na área da saúde mental, sem falar na questão pedagógica, que é permanente”, pontua.

Ainda que passe por questionamentos e tentativas de desqualificação, a lei é uma referência importante para a sociedade. De qualquer forma, segundo Dalmir, ela, por si, não modifica uma cultura, uma forma de ver o mundo, mas pode auxiliar nesta mudança. Para ele, 30 anos, historicamente, é muito pouco para a transformação radical que o ECA propõe. É preciso, para essa mudança, muita pesquisa, ciência, estudo e práticas baseadas neste novo paradigma. “O Estatuto precisa ser internalizado e executado diariamente por todos os atores sociais: família, órgãos estatais do Executivo, Legislativo e Judiciário, escolas, movimentos sociais, entidades da sociedade civil organizada. Exemplo dessa falta de comprometimento é que muitos cursos de graduação em Direito não colocam a disciplina de Direito da Criança e do Adolescente como obrigatória. Muitas vezes, o sujeito se forma e não conhece o direito que tem a maior prioridade de todos. Mas, mesmo com os déficits, acredito que ele atende parcialmente seus objetivos, pois são regras coercitivas, que obrigam a família, o Estado e a sociedade”, reforça.

Refletir enquanto sociedade é um dos pontos que permite a aplicação do ECA, bem como a sua compreensão. Para o Juiz de Direito, no Brasil, tem-se uma cultura pelas reformas, mas é preciso pensar que nem todas são positivas. Em sua opinião, antes de fazer ou propor alterações, é necessário ouvir quem atua na área, realizar pesquisas, enfrentar a realidade e, a partir dela, buscar a solução. “Eventuais aprimoramentos devem vir da ciência (academia), dos operadores administrativos e judiciários, dos movimentos sociais organizados, entre outros atores importantes. É preciso ouvir os especialistas e promover um debate qualificado. A regra do artigo 4º, por exemplo, que estabelece as formas de garantia da prioridade absoluta, com destinação de verbas no orçamento, primazia de atendimento, devem ser mais claras no que deve ser feito, caso não sejam cumpridas”, exemplifica.