As duas mortes da primeira santinha de Passo Fundo

Passo Fundo tem tido ampla repercussão local, regional e mesmo nacional através da divulgação da devoção a menina Maria Elizabeth de Oliveira, falecida em 28 de novembro de 1965 quando, juntamente com amigas, brincada pelas ruas quando fora atropelada e, em razão dos ferimentos, perdeu a vida. Desde então a chamada “santinha de Passo Fundo” tem recebido honras, pedidos, homenagens e, segundo os fiéis, tem amparado e realizado milagres. Esta devoção, todavia, não fora a primeira na cidade. Décadas antes do falecimento e início das crenças na intermediação de Maria Elizabeth, era Maria Pequena que impulsionava fiéis que buscavam consolo, realizações, pediam proteção e demandavam milagres e ajuda.

Maria Pequena –Maria Meireles Trindade -, segundo os parcos registros a que temos hoje acesso para contar parte de sua história, era filha de Nicanor Trindade e de Marcelina Coema, “formosa bugrinha das selvas de Nonoai” (Gomercindo dos Reis, O Nacional, 01/06/1955). Casada com o tenente Marciano Angelino, vivia em Passo Fundo próximo ao Arroio Raquel, na atual Vila Carmem. Segundo Gomercindo dos Reis, Maria tinha fama de falar com Nossa Senhora e ser vidente, o que lhe consagrava ainda em vida como alguém com poder simbólico expressivo ante a comunidade.

Durante a Revolução Federalista seu marido e filho participaram do conflito apoiando os denominados legalistas, defensores da causa castilhista. A cidade foi agitada durante os conflitos com sua população apoiando o legalismo ou o federalismo, evidenciando uma polarização expressiva entre os moradores e mesmo em toda a região, palco de batalhas ao longo da contenda. Envolvidos os homens nas batalhas e campanhas, para as mulheres, em geral, mantinha-se o cotidiano de organização do lar e manutenção familiar em meio ao cenário de disputas políticas que se tornaram militares. Fora numa busca dos inimigos por Marciano e seu filho que o destino de Maria Meireles foi traçado. Segundo os registros, federalistas os procuraram na casa da família e não os encontrando foram em busca de Maria que estaria no Arroio Raquel lavando roupas. Às margens do riacho inquiriram a esposa e mãe que, ante as negativas em identificar onde estariam Marciano e o filho, sofreu duras consequências: “Maria Pequena, foi barbaramente assassinada, com três punhaladas e uma degola, a 28 de novembro de 1894, por um piquete revolucionário” (Gomercindo dos Reis, O Nacional, 01/06/1955).

Sua morte teria causado comoção imediata na população que providenciou seu enterro no próprio local de morte, espaço este que ficou conhecido como Cemitério da Cruzinha e que recebeu, posteriormente, restos mortais de crianças falecidas. Também no Cemitério começou a devoção à “santinha popular”, considerada milagrosa. A veneração a Maria Pequena iniciara de modo voluntário, acreditamos, muito em função da consideração anterior da mesma como vidente e próxima a Nossa Senhora. Da mesma forma, sua morte violenta em defesa da família legou à Maria outro fator de devoção em nada desprezível, o amor maternal, que foi responsável pelos enterros das crianças à sua volta.

Morta em 1894, mobilizou devoções até a década de 1950 quando em função de obras de modernização e urbanização citadina, teve seu túmulo removido e seus ossos recolhidos a então Igreja Catedral em construção. De lá seus restos mortais seriam acomodados em uma capela em honra a santinha. Todavia, - e eis aí a “segunda e derradeira morte de Maria Pequena” –, o espaço nunca foi construído e sua devoção arrefeceu até o esquecimento da milagrosa pela população.

Morta duplamente, Maria Pequena foi esquecida, todavia, anos depois, outro evento traumático ocorrido no mesmo dia do assassinato de Maria Meireles seria registrado na cidade e mobilizaria uma nova devoção – o atropelamento da menina Maria Elizabeth. 28 de novembro mantêm-se como data devocional para milhares de fiéis que prestam suas homenagens agora à menina santa. Altera-se o objeto do crer, transformam-se as demandas e as manifestações de fé, mas persiste o investimento simbólico no poder mediador de uma santinha local. Morrer para viver foi o destino das santas, uma com dupla morte, a segunda com um falecimento trágico e ainda extremamente mobilizador.

Profa. Gizele Zanotto (PPGH/UPF)